sábado, 23 de novembro de 2013

A carteira nº 2


JORGE LEITE DE OLIVEIRA
jojorgeleite@gmail.com
De Brasília-DF

A revista Seleções informa-nos, neste mês, que fez um teste de honestidade em seis cidades brasileiras, nas quais “perdeu” 72 carteiras, com cem reais e identificação do proprietário em cada carteira. Não vamos mencionar os nomes das cidades, mas constatou-se que na mais honesta, São Paulo, setenta por cento das pessoas devolveram a bolsa, enquanto na menos honesta, o Rio de Janeiro, esse mesmo percentual a reteve.
Lembrei-me então do meu conto “A carteira” e resolvi contar-lhe seu desdobramento, amigo leitor. Afinal, tudo muda neste mundo, até a honestidade carioca, que, em outros testes, já foi considerada uma das mais elevadas... Provavelmente, essas últimas carteiras, no meu Rio de Janeiro, estivessem no lugar e hora errados, não é mesmo?
A vida, meu bom amigo, é uma só; mas as existências corporais são muitas. Ou você não leu Brás Cubas, que, de nossa dimensão, narrou a saga de sua última jornada terrena?
Pois bem, para seu melhor entendimento desta versão de “A carteira nº 2”, é preciso que leia em www.dominiopublico.gov.br a versão nº 1. A não ser que, como bom apreciador da literatura, já conheça a história anterior...
A vida prossegue...
Continuando aquela existência, diríamos que Honório tornara-se renomado advogado e jamais desconfiara da infidelidade de Amélia, que o traíra durante dez anos, com Gustavo, amigo do casal. Até que a febre amarela os matou, a todos, no bom ano de 1896, com a diferença de três a quatro semanas entre cada óbito.
Sobrevivera a filha de Amélia, então com quatorze anos, que fora morar com uns parentes, casara-se e dera origem a nova geração da árvore genealógica da família. Ficara, porém, uma dúvida: Maria Clara, a filha, seria mesmo de Honório ou de Gustavo?
É bem verdade que, cinco anos antes de Clara nascer, D. Amélia não conseguira engravidar, o que somente ocorrera após o estreitamento da amizade que o casal passara a ter com Gustavo, o qual, desde então, costumava ser visto a sós com a esposa de Honório na ausência deste. Em geral, Amélia, que gostava de tocar ao piano músicas alemãs, tocava para o amigo, que embevecido não se cansava de aplaudi-la e elogiá-la.
Mas o tempo passara e, como dissemos acima, o triângulo amoroso foi ajustar contas na terra dos pés juntos. Para não confundir o leitor, manteremos, em sua “repaginação”, os mesmos nomes de nossos personagens que se encontram em “A carteira” de 15 mar. 1884.
Eis que, passados quarenta anos no umbral [região trevosa do plano espiritual], o trio reencarnou no Rio de Janeiro. Amélia retornou ao corpo físico como vizinha dos pais de Honório, o marido traído na existência pregressa. Moravam, agora, na Glória. Gustavo, o amante de outrora, voltara à nova existência perto dali, no Leblon, como neto de Clara e filho de um advogado famoso, que muita influência teria em sua vocação para a advocacia.
Os três ficaram amigos, na escola de ensino médio, frequentada por eles, de nome Irmandade da Trindade Universal, dirigida por um padre franciscano. Concluídos os estudos secundários, ainda adolescentes, Gustavo começou um namoro firme com Amélia, sob as vistas complacentes de Honório, que mantinha uma relação amorosa secreta com a amiga.
O tempo passou, e casou-se Gustavo com Amélia; mas agora, o pianista era ele, que também se formara em Direito e passara a advogar sem muito sucesso na profissão; a provedora-mor da casa era a esposa. Foram residir no Leblon, em apartamento doado pelos pais de Gustavo.
Amélia graduara-se em relações internacionais e fora aprovada no concurso do Instituto Rio Branco. Tornara-se diplomata, ganhava muito bem e trabalhava muito também.
Teve filhos gêmeos: um loiro e alto, como Gustavo; o outro, moreno e baixo, como Honório. Por essa época, as crianças estavam com quatro anos, e nada lhes faltava em casa.
Quanto a Honório, tornara-se comerciante em Botafogo, onde também passara a residir. Sua loja ia de vento em popa, desde que Amélia se lhe associara informalmente, haja vista que sua função pública a impedia de assumir qualquer outra atividade remunerada.
Eis que, um belo dia, de repente, Gustavo olhou para o chão e viu, meio oculta, uma carteira caída à frente do balcão da loja do amigo, quando em visita a este, no final do expediente comercial. Em instantes, abaixou-se, apanhou-a e, sob os olhares de um homenzinho que já fechava a porta da loja, e ninguém mais era do que seu amigo Honório, ouviu este lhe dizer, sorrindo, enquanto Amélia, pálida, aparecia por detrás do balcão:
— Rapaz, que bom que você achou minha carteira. Amélia estava ajudando-me a procurá-la, pois a féria do dia está toda guardada aí e já estávamos imaginando que algum larápio a roubara.
Ao que respondeu Gustavo, entregando-lhe a bolsa, orgulhoso da douta e prestimosa esposa:
— Muito bem, querida, ajudar os amigos é mais do que um favor, é obrigação. Ainda mais quando se é sócio, completou rindo bastante. Mas agora vocês me desculpem, tenho que ir voando à casa de vovó, Maria Clara, tomar um chazinho com ela, pois vamos comemorar minha primeira vitória importante na vara de família.
 — É mesmo, amor? – pergunta-lhe a esposa, já refeita do susto inicial — E qual foi a causa que ganhaste?
— Coisa simples. Uma separação litigiosa em favor do marido traído; algo que jamais ocorrerá conosco, não é mesmo, amor da minha vida?
— O amor de vocês é tão lindo – acrescenta Honório —, que nada no mundo vai separá-los.
— Claro — conclui Amélia — lindo e único! Parabéns, querido, depois, os três comemoramos mais esta sua vitória jurídica, quando você tocará para nós, ao piano, uma sinfonia alemã. Mas agora que está tudo bem, vou para casa descansar um pouco, pois hoje precisei auxiliar o embaixador num processo de concessão de asilo a um político corrupto e adúltero. E isso me deixou exausta e indignada...
— Quer que a deixe em casa, amor? Estou de carro...
— Não é preciso, querido, também estou de carro; e vou conferir com Honório a féria do dia. Às 21 horas, estaremos lá.
Gustavo sai. Honório, de posse da carteira, retirou de seu interior um bilhetinho, que o outro não tivera tempo de “ler, e estendeu-o a D. Amélia, que, ansiosa e trêmula, rasgou-o em trinta mil pedaços: era um bilhetinho de amor”.
Mais tarde, os três inseparáveis amigos comemoraram, na casa do casal, a causa ganha por Gustavo que, ao piano, tocou a 9ª sinfonia de Beethoven.
Ao centro, voltado para o teclado, o advogado, feliz, tocava divinamente ladeado por Honório e Amélia que cantavam, com ele, a letra musical em português. De repente, silenciaram, se abraçaram emocionados e choraram copiosamente, após recitarem esta estrofe:
Quem já conseguiu o maior tesouro
De ser o amigo de um amigo,
Quem já conquistou uma mulher amável
Rejubile-se conosco!
Sim, mesmo se alguém conquistar apenas uma alma,
Uma única em todo o mundo.
Mas aquele que falhou nisso
Que fique chorando sozinho!            

Visite o blog Jorge, o sonhador: http://www.jojorgeleite.blogspot.com.br/


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