sábado, 5 de julho de 2014

Língua, política e literatura



JORGE LEITE DE OLIVEIRA
jojorgeleite@gmail.com
De Brasília-DF

Não adianta, o povo não aceita a linguagem do povo. Ele quer é falar bonito, quando não, difícil, ainda que não entenda e nem seja entendido, ainda que desconheça o significado de todas as palavras que o dotô diga. Mas em geral há comunicação...
— Dotô eu tô cuma dô de cabeça, o sinhô tem navagina pra mim dá? Disse uma paciente do interior que recebia a visita do médico em atendimento pelo Funrural (fundo de saúde que atende esporadicamente as regiões pobres do interior brasileiro).
Em seguida, outra disse ao dentista:
— Meu dente dói muito dotô. O sinhô pode distraí ele?
Ao final dos atendimentos: dúzias de ovos e de bananas, sacos de laranja, galinhas caipiras, cocos eram ofertados com gratidão a enfermeiros, médicos e dentistas, seus benfeitores, por aquelas pessoas do interior.
Não faz muito tempo (apenas 141 anos), quando me referi à língua, no final de meu artigo conhecido como “Instinto de nacionalidade”, critiquei a falta da pureza da linguagem dos nossos livros.
Alguns defeitos graves relacionados por este articulista àquela época: “solecismos da linguagem comum” e o galicismo excessivo. O primeiro caracteriza-se pelos erros de concordância, de regência, de colocação pronominal, etc. O segundo é fruto do espírito acomodatício de alguns falantes do francês que, por preguiça, ou mesmo por exagero de princípio mantêm a palavra no original francófono. Exemplo: o uso da palavra francesa desencarne, em vez de desencarnação. Para muitos, pura bobagem, o que importa é a comunicação. (Primeira rima.)
E como o Brasil, parodiando a frase do meu prezado amigo Humberto de Campos, é o coração do mundo, a pátria da pureza de todas as línguas, menos da pureza da sua, o brasileirismo do meu tempo não é o do seu, meu caro leitor. Atualmente, com a influência dos estudos linguísticos, tenta-se igualar, em termos de fala ou escrita, a língua do povo com a dos doutos. Irrisão pura. Os cursinhos, concursos, livros técnicos, periódicos, escolas e academias continuam aceitando como padrão unicamente a chamada norma culta, para desespero dos linguistas, que não convencem nem mesmo os simples de que a destes é uma linguagem correta.
Posso na prática exemplificar, se o leitor exigente o desejar. (Segunda rima em dois decassílabos.)
Nem tudo, porém, está perdido. Eis que a literatura vem, contemporaneamente, resgatar o uso da linguagem do povo, coadjuvada pelas composições musicais populares. E isso é um espanto, para os puristas da linguagem. Inaceitável, gritam do alto do seu soberbo saber sacripanta. (Alta aliteração.)
Veja, nobre leitor, por exemplo, esta estrofe de “Garota na chuva”, cantada por Ednéia Macedo,  que primor:
Garota na chuva ou no verão,
Garota na chuva são as quatro “estação”,
Garota na chuva ou no verão,
Garota na chuva,
A maior sensação.
A Ednéia canta e encanta... Mas vai você escrever assim no vestibular de qualquer universidade para ver se não receberá um rotundo zero em sua redação.
Com a intolerância ou não dos conservadores, porém, eis que a literatura da pós-modernidade coloca de ponta cabeça tudo o que de antanho era considerado irretocável. E novo cânone literário surge no horizonte para ficar eternamente conosco, como também nos prometera o Profeta sobre o Espírito de Verdade (S. João, 14:16, 17).
Meu caro, se a voz do povo fosse a voz de Deus, o Cristo não seria crucificado.
Repito o que disse antes sobre a inexistência de dúvida em relação ao aumento e alteração da língua, com o uso consuetudinário e os costumes da nação. Riqueza de dizer, novas locuções entram no domínio estilístico e adquirem direito de cidadania.
Só não é aceitável que se olvidem as normas sintáticas e se descumpra o VOLP*, da ABL*, fundada e presidida por mim, tão zelosa da pureza idiomática. Afinal de contas, repito pela última vez: 
A influência popular tem um limite; e o escritor não está obrigado a receber e dar curso a tudo o que o abuso, o capricho e a moda inventam e fazem correr. Pelo contrário, ele exerce também uma grande parte de influência a este respeito, depurando a linguagem do povo e aperfeiçoando-lhe a razão.
A não ser que esteja tratando da literatura brasileira contemporânea. Nesse caso, o buraco é mais embaixo, respeitável leitor.
Vem-me à mente os versos do heteronímico Fernando Pessoa em Mar Português: “Valeu a pena? Tudo vale a pena/ Se a alma não é pequena”.
Quanto ao que disse alhures sobre a pouca leitura dos clássicos, continua da mesma forma: pouca leitura, muita besteira na internet.
Outrora, afirmara que “cada tempo tem o seu estilo”.
Hoje, porém, que evoluí, participo da opinião daqueles que pensam o contrário. No mundo atual, todos os estilos têm seu lugar no espaço.
O que permanece inalterável, em minha fala, é a questão da precipitação na elaboração de textos, pelos nossos escritores contemporâneos. Por que dizer em dez páginas o que pode ser dito em dez linhas?
E, se há intenção de igualarem-se as criações do espírito com as da matéria, atualmente, com toda a autoridade de espírito liberto da carne, afianço-lhes que isso é inconciliável. Podemos até dar a volta ao mundo em oito horas, mas para se produzir algo original e de alto interesse literário é necessário um pouco mais de tempo.
Vivo o espírito, suavidade e sublimidade sentimental, estilo gracioso aliado aos dotes de observação e crítica, gosto por vezes duvidoso, pouca reflexão e staccato, impureza eventual do idioma, intensa cor local...
Enfim,  nada disso importa mais em nossa produção literária, que desde os anos setenta do século XIX, salvo raras exceções, ingressou nesta bosta política que vemos na atualidade: o instinto de nacionalidade mistura a lei de gérson com a  mediocridade, a corrupção, a ausência de autoridade, o nepotismo e o apadrinhamento. (Últimas rimas.)
Enfim, tudo pode ser objeto da literatura, a política, principalmente.
Em “O passado, o presente e o futuro da literatura” (A Marmota, 9 e 23 abr. 1858), eu disse que “Uma revolução literária e política fazia-se necessária”.
Alguma novidade política em relação ao que era antes, leitor?
E eis que o futuro se faz presente.
Qual!

VOLP* - Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa.
ABL* – Academia Brasileira de Letras.




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