sábado, 15 de novembro de 2014

O país das falcatruas


JORGE LEITE DE OLIVEIRA
jojorgeleite@gmail.com
De Brasília-DF

Numa famosa República, em 1889, conhecida pela corrupção, certo dia, inventaram uma forma de apurar os votos de candidatos à Câmara dos comuns. A Câmara alta, constituída pela burguesia, indicava seus representantes ao governo, mas não votava. Como ainda não havia internet, nem muito menos urna eletrônica, a apuração far-se-ia pela cor da tinta predominante nas cédulas eleitorais distribuídas à população. Os inventores do processo, respaldados pelos governantes, garantiam que a máquina era à prova de fraude, tanto quanto a cédula, que imediatamente somava mais um à cor escolhida pelo votante. O candidato da cor mais votada seria o vencedor.
No primeiro turno daquele ano inesquecível, três partidos principais concorriam com seus candidatos ao cargo de primeiro ministro: o vermelho, da situação, o azul e o verde, da oposição. Houvera ainda um quarto partido, o amarelo, cujo candidato morrera acidentado no helicóptero que mergulhou em parafuso com ele e seus correligionários. Assim, os eleitores do extinto partido amarelo juntaram-se ao verde e este se fortaleceu.
Na campanha eleitoral de primeiro turno (a votação era em dois turnos), o partido verde fora de tal modo atacado pelo partido vermelho, que seus eleitores mudaram de opinião e apoiaram maciçamente o partido azul. Outros votaram em branco ou anularam seus votos. Agiram como Pilatos, que lavou suas mãos, mas carrega a culpa do Cristo crucificado.
No início da campanha do segundo turno, os ataques vermelhos se intensificaram contra o partido azul, mas este resistiu bravamente e preveniu seus eleitores contra o que, segundo se dizia, o partido vermelho ameaçava o povo, caso votassem no outro candidato.
O candidato azul surpreendia seus adversários, perplexos com sua capacidade de desfazer as intrigas armadas contra ele. Havia, entretanto, um acordo, quase secreto, dos membros do partido vermelho, na situação há 24 anos, que juraram fazer de tudo para se perpetuarem no governo.
Na reunião rubra que decidiu definitivamente o que fazer para se manter no poder, acompanhei de perto, sem ser visto, a conversa e os planos mefistofélicos do partido (Afinal, não se esqueçam de que estou em outra dimensão, a dos espíritos, que os ingênuos insistem em chamar de alma do outro mundo. Coitados, somos deste mundo mesmo, por enquanto...).
— Ao menos setenta anos, dizia um dos correligionários. Pois então já não estaremos mais vivos e, após nós, que venha o dilúvio.
— Negativo, contestou outro; se fizermos a coisa certa, nunca mais haverá alternância de partidos, neste governo. Apenas nós permaneceremos no poder, sendo reeleitos a cada quatro anos.
— Mas não estamos numa democracia? Disse linda deputada. É preciso dar oportunidade a outrem de propor novo representante popular, ainda que utilizemos todos os instrumentos legais para elegermos nosso primeiro ministro.
— Concordo contigo, falou o senador presente ao debate. Qual é a maior empresa deste país, cujos órgãos exportadores se multiplicam aos milhares?
— É a Mineralópolis, respondeu a deputada.
— Pois bem, nomeemos, legalmente, seu presidente, seus diretores, seus contadores, enfim, para ocuparem cargos-chave e abramos contas em bancos do exterior, conhecidos por seu sigilo absoluto. Como sabemos, em nosso país, têm sido achadas muitas minas de ouro e pedras preciosas, cujo valor é incalculável. Tudo isso está sob o controle governamental. Negociemos esses minérios, depositemos esses valores nas contas abertas e digamos ao povo que só temos encontrado pedras de pouco valor, cuja utilidade maior é fabricar bijuterias.
— E o que será feito da fortuna depositada nesses bancos, senador? Perguntou, ingenuamente, outro deputado.
— Será empregada numa causa nobre. Repartiremos os valores, em cotas iguais para nossos correligionários, sob a condição de utilizarem parte do dinheiro na reeleição de nosso primeiro ministro e o restante na distribuição de pães para todas as famílias pobres deste país.
— Mas, senador, e o investimento em educação, saúde e segurança, que tanto têm sido prometidos nas campanhas eleitorais por todos os candidatos?
— Minha bela deputada, enquanto houver pão na mesa do pobre, não precisamos nos preocupar com a saúde, pois uma pessoa bem alimentada não adoece. Se todos receberem a mesma cota de pão, para que pensarmos em segurança? Ladrão só rouba de quem tem...
— E a educação? E os burgueses da Câmara alta?
— Ora, minha ingênua companheira, se instruirmos nosso povo, adeus plano de poder ad aeternum. Não queremos reforçar a concorrência e, sim, governar com todos os poderes materiais e espirituais sob nosso controle. Quanto aos burgueses de outros partidos, ficarão tão enfraquecidos que, de resto, só restaremos nós, os burgueses vermelhos. Gostou do trocadilho? E gargalhou...
— O povo, porém, pode se cansar de viver de auxílio, sem perspectiva de progresso econômico e intelectual. Não se esqueça, senador, que ainda temos na Câmara alta as elites não vermelhas, que se sentirão ameaçadas e procurarão perverter, principalmente as mentes jovens e sonhadoras.
— Podemos fazer um julgamento semelhante ao de Sócrates e condenar os que se atreverem a isso a tomar cicuta, curare ou enfrentar o pelotão de fuzilamento. Propôs um douto parlamentar, que até então estivera calado.
— Ora, meu amigo, disse o líder do debate, há uma forma mais prática de resolver tudo isso, sem colocar a população contra nós, caso apelemos para a força. Usemos a inteligência.
      — Como assim? Perguntaram todos a uma só voz.
— Não estamos no controle da situação? Pois bem, façamos cédulas nas cores azul e vermelha, com códigos específicos para ninguém desconfiar de fraudes; porém, contratemos um especialista da mais alta confiança, não por ser meu filho, mas por ser filiado ao partido vermelho, para criar um mecanismo oculto nas máquinas de votação, a fim de que as células vermelhas sejam computadas em dobro. Meu garoto é um gênio da mecânica e já me propôs fazer o trabalho pela bagatela de um bilhão de dólares. E o que é isso em vista dos trilhões?...
— Como assim computadas se ainda não temos computadores? Perguntou um corvo que tudo ouvia, atento, pousado no ombro de um dos deputados.
— É modo de falar, mané. - Grunhiu um gato preto, dono da linda deputada, confortavelmente deitado em bela almofada de veludo trazida por ela. - Atualmente, computar é o mesmo que adicionar, somar, contar, entendeu?
— Ah, sim, responderam todos os presentes... Mas isso será o suficiente para ganharmos as eleições? E se houver unanimidade contra o poder em nossas mãos?
— Façamos o seguinte, utilizemos todos os correligionários de confiança do partido para que supervisionem a votação e orientem os camaradas para só liberarem seu resultado após minuciosa apuração de todas as urnas. Entenderam?
— Sim, sim, camarada senador. Com a rapidez desse nosso sistema de captação de votos, em apenas uma hora a mais, decorrente de fuso horário, poderemos substituir milhões de cédulas "defeituosas", desde que não sejam as vermelhas...
— Todos aplaudiram-no entusiasticamente com crepitante gargalhada.
— Ainda assim, senhores, pode haver o caso do outro partido pedir auditoria para apuração rigorosa dos votos. Disse o candidato, que estivera presente e calado até então.
— Nosso relator já está instruído a ser contrário ao procedimento, alegando que tal conduta poderá prejudicar a confiança do povo em nosso sistema único na Terra, infalível e absolutamente confiável de apuração de votos. E, como os nossos adversários são completamente leigos em matéria mecânica, mesmo que haja auditoria, ninguém, a não ser fulano, eu e nosso próprio candidato, descobrirá o segredo da máquina.
— Por que somente vocês? Atreveu-se a perguntar o gato.
— Você parece que não tem religião – respondeu-lhe o corvo -. Nunca ouviu falar da trindade universal?
— Isso mesmo! - gritou um cachorro vira-latas que passava por ali - executivo, legislativo e judiciário. Tudo pela democracia.
Todos aplaudiram-no de pé; e o país das falcatruas continuou fingindo ser a mais inteligente democracia do mundo...



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