sábado, 13 de junho de 2015

Outro caso da vara



JORGE LEITE DE OLIVEIRA
jojorgeleite@gmail.com
De Brasília-DF

“De todas as coisas humanas, a única que tem o fim em si mesma é a arte.” - Machado de Assis.

Estive ontem em Jardim Novo Mundo, Goiás, presente ao velório de Lara.(1)
À tarde, antes de seu sepultamento, faziam-se presentes dezenas de pessoas e alguns pastores, que proferiram belo e tocante discurso sobre a vida da “morta”. Fiquei ali a observar as manifestações pesarosas sobre ela, cujo espírito repousa na casa de Abraão, na cidade dos pés juntos.
Há uma frase, de autor desconhecido, que diz assim: “A vida é como um livro. Alguns capítulos são curtos, outros tristes. Mas se não virarmos sua página nunca vamos saber o que o próximo capítulo guarda”. Na vida da velada Lara, ocorreu de tudo: o filho primogênito morreu ao nascer, disse-lhe o obstetra, quando tentou retirar-lhe, a fórceps, a criança do ventre; mas ela ouvira perfeitamente o barulho de um osso vertebral do bebê partindo ao ser forçado pelo fórceps imperito. Capítulo abortado, portanto. Outro filho, ao descer uma rua de bicicleta, após se desviar de um ônibus que invadiu sua pista, foi de encontro a um poste, bateu com a cabeça nele e morreu aos vinte e poucos anos. Capítulo curto. A filha Adélia casou-se, teve também uma filha no primeiro ano de consórcio e, ano depois, ao tentar parir outro bebê, morreu com este na maternidade. Lara, então, viu-se obrigada a criar, junto com os três filhos restantes, a neta abandonada à própria sorte pelo genro. Capítulos tristes...
Agora, Lara virou esta página de sua vida e foi recebida por ninguém menos do que o Senhor, que lhe recomendou descansar um pouco, antes de se deslumbrar com as belezas do céu. Em sua homenagem, adapto velha frase: “Para as rosas, o jardineiro é o Eterno”.
Um amiguinho da casa, percebeu espantado minha presença contrita no local do velório e saiu anunciando-me a todos em altos brados, sem que ninguém entendesse nada. Era Boy Friend, que me fez rir à socapa.
Em seguida, ouvi de outrem o relato sobre o exemplo de vida de um dos nove irmãos, sobrinho da falecida, chamado José. Ainda bebê, José fora morar longe dos pais e criado pelos avós. Cresceu, tornou-se gerente de uma grande firma, casou-se bem, foi pai de três filhos, mas jamais desprezou a família de sua mãe, cunhada da falecida, à qual sempre que pode visita, embora morando em outro estado.
Mais adiante, ouvi nova história. Dos três filhos restantes de Lara, o líder é o primogênito Charles. Seu relato foi comovente. Quando completara dezesseis anos de idade, seu pai empregara-o no bar de um seu compadre, que pagava ao rapaz dois salários mínimos para administrar seu boteco e atender aos clientes, de segunda a sábado, das oito às 21h. Do outro lado da rua, funcionava um escritório de contabilidade, e seu proprietário era cliente assíduo do bar administrado por Charles.
Certo dia, esse cliente, percebendo a inteligência do rapaz, propôs-lhe ir trabalhar com ele pela metade do salário que Charles recebia no bar. Sem pensar duas vezes, o jovem aceitou a proposta.
Ao chegar a casa, pedira conselhos à mãe, agora cadaverizada, que, na época, lhe dissera para fazer o que julgasse melhor para seu futuro.
Mais tarde, ao tomar conhecimento da decisão do filho em trocar de emprego, o pai ameaçou-o com uma surra de vara, caso ele deixasse o trabalho no bar do seu compadre.
Charles não se intimidou... no dia seguinte, disse ao pai que já não mais trabalhava no bar e acabara de ser contratado como auxiliar de contabilidade no escritório do seu novo patrão.
O pai não pensou duas vezes, pegou uma vara de marmelo e aplicou-lhe uma surra homérica. O adolescente aguentou firme a coça e prometeu-se provar ao pai, no futuro, o erro que este cometera.
Dito e feito, anos após esse acontecimento, Charles tornou-se o mais destacado contador da cidade. É representante da Associação de Contabilidade do Estado, presidente do sindicato de contabilidade de sua cidade e chefe de onze funcionários. O melhor deles é seu filho Raul. O outro filho, Rúben, com suas bênçãos, conclui, atualmente, o curso de engenharia elétrica e já foi contratado por uma grande firma particular, que presta serviços para a cidade.
Ao longo desses anos, Charles tornou-se, também, admirado benfeitor de sua família, a quem jamais deixou de apoiar socioeconomicamente.
Pois bem, dias antes da passagem de Lara para o lado de cá, Jacó chamou o filho a um canto de um quarto da casa e, aos prantos, pediu-lhe perdão pela surra que lhe dera 21 anos atrás.
Como demonstração de sua grande alma, o rapaz abraçou seu pai e disse-lhe que não somente o perdoava, como também lhe agradecia, pois fora a surra tomada que o ensinara a enfrentar com galhardia outras “surras” da vida, a tudo vencer e realizar seu grande sonho de não somente ajudar sua família como também proporcionar uma vida melhor a outras pessoas.
Certa vez, recomendei: “Não levante a espada sobre a cabeça de quem lhe pedir perdão”. Charles fez melhor, reconheceu a importância do ato irrefletido do pai em sua vida e, não somente o perdoou pela surra de vara, mas o auxilia, até hoje, sem jamais deixar de honrá-lo, como recomenda o Senhor.
Aproveito para prometer a Boy Friend que, em minha próxima visita a sua casa, trarei Miss Dólar para lhe fazer coro aos latidos caninos.
Ouvindo esta história, um verme gaiato e irônico apressou-se a dizer-me:
— E eis que o viajante já não está mais imóvel.

(1) A propósito do título deste texto, lembro ao leitor que O caso da vara é um dos mais famosos contos machadianos, publicado na Gazeta de notícias, em 1891, e republicado no livro Páginas recolhidas.



  
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