sábado, 20 de fevereiro de 2016

Machado e a intervenção militar


JORGE LEITE DE OLIVEIRA
jojorgeleite@gmail.com
De Brasília-DF

Parafraseando Cíntia Schwantes, como diria Jack, o estripador, “vamos por partes”. Segundo meu ordinário (marche!) secretário Joteli, em seu tempo de militar, ouviu de um colega de farda o seguinte relato:
– Eu não queria servir ao Exército, mas como minha família era de prole numerosa, com mãe viúva e sete filhos, incluindo eu, quatro deles ainda crianças e os dois mais velhos com empregos salários-mínimos, alistei-me... No dia da seleção, fui logo prevenindo o oficial encarregado das entrevistas sobre minha situação, além de colocá-lo a par de uma otite crônica nos meus dois ouvidos.
– E o que ele lhe respondeu? Perguntou Joteli, a quem passo a palavra daqui por diante.
– Só te dispenso do serviço militar obrigatório se voltares aqui com um atestado médico que constate teu problema auditivo. (O cara era gaúcho, tchê.)
– E em relação à sua condição social, o que ele disse?
– Disse que, se eu já tinha outros dois irmãos mais velhos ajudando no sustento da família, isso bastava. O Brasil precisava de mim. Além do mais, no quartel, eu receberia alojamento, colegas que dormiriam comigo no alojamento, a farda, comida, toalha de banho, banheiro com água fria e até um soldo de um salário mínimo para as despesas próprias. Portanto, nada me faltaria.
– Isso me faz lembrar o salmo 23 de Davi, Joteli: “O senhor é o meu pastor, e nada me faltará...”
– Posso continuar, Machado?
Em frente, Joteli. O que mais lhe disse seu colega de farda?
– Oliveira, este era seu nome de guerra, disse-me que, naquele momento, um sentimento patriótico assomou seu espírito e ele, antes mesmo de aprender os movimentos militares, tomou a posição de sentido, prestou continência ao coronel, deu meia volta e... foi em... frente! Anos depois, escreveria um poema intitulado “A marcha”, que recebeu medalha de bronze em concurso nacional de poesia, promovido pela Revista Brasília, que nem sei se ainda existe no Distrito Federal.
– Mas, Oliveira, disse-lhe eu, por que você não levou um atestado médico?
– Porque para quem estava desempregado, Joteli, na minha situação, as condições oferecidas eram promissoras. Além disso, poderia, ao final do mês, repassar meu soldo para minha mãe e dar-lhe mais uma ajuda no sustento de sua numerosa prole.
– Pelo que vejo, o serviço militar obrigatório lhe foi muito útil, Oliveira. Mais alguma lembrança inesquecível?
– Sim, Joteli. Dois anos depois, já engajado e pensando fazer “carreira” no Exército, fui aprovado em concurso para sargento na área de comunicação. No ano anterior, já fora aprovado no curso para cabo, em primeiro lugar dentre os soldados inscritos, sem ter tido o prazer de colocar as divisas nos ombros. Mas essa é outra história.
– Muito bem! Concluído o curso, naturalmente, você pôde continuar em sua terra natal e ajudar um pouco mais sua mãe.
– Certo, quanto à segunda parte; errado na primeira, porque fui transferido para Salvador, na Bahia. Como meu problema de otite crônica bilateral nunca havia sido curado, depois de um ano nesse estado e nesse estado, compreendeu?, voltei ao Rio de Janeiro, de férias, e busquei tratamento otorrinolaringológico no Hospital Central do Exército.
– Muito bem! Com certeza, ante a gravidade do seu caso, o médico que o atendeu recomendou sua transferência para perto da família, a fim de receber os cuidados médicos e familiares, não é mesmo, Oliveira?
– Quem me dera, Joteli! Era um coronel otorrino que, ao ouvir minha história, ficou tão comovido que, antes de ordenar (Militar não pede, ordena.) a uma enfermeira que fizesse uma lavagem nos meus dois ouvidos, alertou-me com as seguintes doces palavras:
– Sargento, não me venha com a tentativa do golpe da saúde para forçar sua transferência para cá. Você não tem nada! Aproveite e lave a boca, além dos ouvidos dele, enfermeira.
– Gente boa, esse coronel, não é mesmo?
– Com certeza! Décadas depois, soube que em meus ouvidos não poderia entrar uma só gota d’água. Mas, como diz a música de Chico Buarque, transformada em peça teatral: “Pode ser a gota d’água”... Prometi a mim mesmo que um dia eu voltaria para agradecer ao nobre oficial por seus cuidados médicos.
– E você voltou?
– Estou voltando agora, quarenta anos depois, nas asas dos devaneios literários. Ele lerá isto, tenho certeza, como também foi certo o reencontro do seu amigo Machado com sua amada Carolina, após transpostas as águas do rio Lete.
Ainda em Salvador, após passar dias tratando soldados com febre alta, no quartel, fui acometido de uma labirintite tão forte que perdi os sentidos e, quando despertei, estava internado no Hospital Geral de Salvador, com um soro correndo em minha veia do braço. Ao meu lado, o médico do quartel, quase chorando, pediu-me perdão por não me ter dado atenção quando eu, dois dias antes, o procurei para lhe dizer que, embora fosse dia de sol a pino, via tudo às escuras...
Duas semanas depois, tive alta e voltei às atividades normais do quartel. A otite continuava... Firme! como um soldado que recebesse ordens de seu superior, após o primeiro comando: Cobrir! No primeiro dia de alta, retornando ao quartel, ao participar de uma marcha matutina, sob o comando do tenente R2 Cláudion, este percebeu que eu marchava que nem um bêbado e gritou, para eu e a tropa ouvirmos:
– Sargento Oliveira, acerte o passo!
Não perdi tempo e lhe respondi:
– O senhor não está vendo que estou com problema de equilíbrio, tenente?
Ao que ele retrucou, ainda durante a marcha:
– Sargento Oliveira, ao final do desfile, procure-me no meu posto de comando (PC).
Não lhe dei resposta, nem também obedeci a sua ordem, mas, dias depois, soube do Raulindo, um velho sargento que me tratava quase como um filho, que o tenente Cláudion o procurara e lhe perguntara:
– O que está acontecendo com o sargento Oliveira e por que ele não obedeceu à minha ordem de ir falar comigo no meu PC?
Resposta do Raulindo:
– O Oliveira é um bom rapaz, mas não pise no calo dele não, pois ele vira uma fera.
Nunca mais fiquei sabendo o que o tenente Cláudion desejava falar comigo em seu PC, embora, por muito tempo, eu tivesse a impressão de que, ao final do expediente, ao ser lida a ordem do dia, o sargenteante dissesse: “Quarta parte, justiça e disciplina: fica detido no quartel, por trinta dias, o sargento Oliveira por desacato ao comandante da companhia X”. Tal, porém, não ocorreu... Por que será?
– Oliveira, sentido! Como você se atreve a tanto?
– Agora, quem entra na conversa sou eu, Joteli. Por que você fica remoendo essas remotas histórias do Oliveira?
– Então você não sabe que “água parada não move moinho”, Machado?
Vamos em frente, Oliveira, faça de conta que sou seu analista do Rio, assim como houve um “analista de Bagé”. Põe tudo para fora.
– Sim, meu camarada! Da capital, fui transferido para o interior da Bahia, sem que meu problema crônico de otite bilateral fosse descoberto. Até o dia em que, recém-casado, fui encaminhado ao Hospital Geral do Exército em São Paulo, com indicação cirúrgica, após ter sido descoberto, no Hospital das Forças Armadas, em Brasília, que minha otite era proveniente de colesteatomas bilaterais gigantes (sic).
– Sei... lá em São Paulo você foi internado e, dias depois, operado de ambos os ouvidos, já estava em casa, recuperado e nos braços da amada recém-casada...
– Quisera, Joteli, quisera. Deixei minha mulher na casa de minha mãe, no Rio, e fiquei aguardando atendimento médico, pacientemente, em enfermaria do hospital, na companhia de outros colegas de farda. Após cerca de quinze dias, no último final de semana em que, às sextas-feiras, ao término do expediente, todos recebíamos uma dispensa para ficar com a família, vi que a enfermeira entregou a autorização para saída a todos, menos a mim. Questionada, ela respondeu-me, agressivamente, que eu não precisava de dispensa, pois passava o dia todo na boa vida, só comendo, dormindo e lendo.
Revoltado, disse-lhe poucas e boas, mas, hora depois, recebi a dispensa de uma raivosa enfermeira. Meu pecado era simplesmente ser paciente por fora e doente por dentro...
A briga fora promissora. Na semana seguinte, fui levado ao centro cirúrgico para o primeiro procedimento operatório.
Antes de ser operado, seu namorado (sic), que era o coronel anestesista, indagou-me sobre os motivos da briga com a enfermeira. Após minha breve explicação, sem eu saber, até então, do seu relacionamento com a profissional da enfermagem, contei-lhe minha versão rapidamente e chorei como criança, imaginando-me em muito boas mãos, como de fato estava. Nada senti, nem antes, nem após o ato cirúrgico.
É bem verdade que a cirurgia não resolveu meu problema, mas que fui muito bem tratado ali, lá isso é certo. Tão certo que, após a operação, ao se saber que eu não possuía recursos para levar minha esposa do Rio de Janeiro para o hospital onde me encontrava internado, reservaram-nos um quarto particular e pude ficar em sua companhia até o dia de minha alta hospitalar.
– Mas como você conseguiu sobreviver no estado em que estava?
– Mistérios de Deus, Joteli, mistérios divinos... Transferido para Brasília, a meu pedido, um ano depois, ali descobriram os tumores que me levaram a tanta guerra, ainda que em tempo de paz. Meses após, fui internado mais duas vezes para cirurgia nos ouvidos. Na primeira, operado por uma cirurgiã famosa, no Hospital das Forças Armadas, despertei da anestesia geral em pleno procedimento cirúrgico e, enquanto sentia uma serra cortar o colesteatoma, ouvia a conversa da cirurgiã com o oficial anestesista. Em dado momento, a médica lhe disse:
– Ele está acordado, pois está se mexendo muito...
Nada mais ouvi. Quando despertei, antes que me fosse perguntado algo, relatei, chorando, que havia sentido tudo o que ocorrera no ato cirúrgico. Então, tornei a “dormir”. Até hoje, lembro-me, emocionado, do carinho recebido dos militares responsáveis por minha cirurgia naquele dia inesquecível. Nem uma palavra de justificativa ou pedido de desculpa!
– Sei... mas o importante é que você ficou curado.
– Com certeza. Nunca mais tive nada no ouvido esquerdo, nem mesmo a audição.
– E o outro ouvido?
– O ouvido direito foi operado, cerca de três anos depois, por um famoso cirurgião, no mesmo hospital.
– E correu tudo bem com a anestesia e cirurgia?
– Sim, pois antes de ser operado, o novo anestesista conversou comigo e eu lhe pedi que tivesse um pouco mais de cuidado com o procedimento anestésico, após lhe contar, rapidamente, o que ocorrera na cirurgia anterior.
– E a audição?
– Nem o cirurgião entende o que aconteceu, pois, embora minha “oficina auditiva” tenha sido removida, preservei cerca de 70% da audição desse ouvido, se é que pode dizer isso quem usa aparelho auditivo há muito tempo na orelha direita.
É por isso que detesto a esquerda!
Nada mais disse Oliveira e nada mais lhe perguntei, ó Machado.
– É o que eu sempre digo, Joteli, enquanto elementos estúpidos como você e esse seu colega não se calarem, a democracia estará salva.
– Mas ainda acho, Bruxo, que uma intervenção militar como a ocorrida em sua época e narrada em sua crônica, na Argentina, quando os militares afastaram os governantes corruptos e entregaram o governo aos civis, é o ideal para o Brasil. O que você fala agora sobre isso?
– Os mortos não falam, meu caro Joteli...





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